7.
Num plano de páginas duplas sobredimensionadas pela brancura fora do comum das revistas de imprensa, um rosto masculino inquietava-se com uma particular meia dúzia de linhas do resto do conteúdo dos grandes parágrafos pretos.
«(...) Além disso sou naturalmente muitas outras coisas. A incapacidade de condensar toda essas coisas comuns numa definição é decerto comum a toda a gente. Há características próprias das pessoas, é claro, mas não sei se por aí se pode chegar a uma ideia de quem somos. Se eu disser que tento perceber e não perder nada do que se passa à minha volta, isto ajuda a definir quem eu sou? O que me levou a definir-me pelo que faço tem a ver com uma apreciação do profissionalismo como valor.»
A entrevista era conduzida pela primeira intelectual portuguesa da geração dos anos quarenta (nascida no capim africano) a conseguir com classe um cabelo demasiado curto para um rosto feminino e sem parecer saída de um anúncio da velha Olex ou como protagonista das tendências feministas desses tempos (como a carapinha da Lara Lee ou a feição masculinizada da estridente e aguda Ellis Regina).
Registe-se também que a dita senhora tem ainda a acrescentar às suas virtudes a semelhança espantosa com "O Menino e a Pomba" do período azul de Picasso.
"O que somos... O que configuramos intrínseco?..." - registou Manuela para si.
Questões como estas tentavam sobreviver em cerca de oito páginas propositadamente produzidas a preto e branco para a narrativa íntima e sem que o professor de literatura e a jornalista - que nunca foi formada em tal categoria - chegassem sequer a beliscá-las. Por vezes parecem tabu ou coisa do campo do sagrado inatingível.
Na verdade, a sua dimensão oculta (normalmente disfarçada de assunto trivial e inútil) parece necessitar mais da reflexão do Homem do que este dela própria, mesmo quando bailada em simples conversa.
Manuela penetrou imediatamente no texto assim que lera que «um autor maior é aquele que introduz alterações maciças da consciência».
A cacofonia produzida pelas empregadas no recolher dos pratos, dos talheres e dos copos fez-se distante e tão longe como um som de automóvel violado na noite incauta da rua esvaziada.
Deixara-a curiosa que um especialista das Letras e afins, quando interrogado sobre a qualidade de determinada Obra, negligenciasse a sua realidade e essência humana e se propusesse destrinçar directamente a (im)pessoalidade do próprio autor por considerar residir na sua identidade exclusiva a "chave" para o entendimento e interpretação do objecto literário que criou.
«Uma das coisas que para mim é central na leitura é perceber qual é a cara da pessoa que escreve(...). Há um momento em que julgo perceber quem é a pessoa do outro lado».
"Um texto... Um autor... Onde começa um e acaba o outro?" - pensou desconfiada com o que lhe parecia pecar por excessiva relatividade.
"O que é o texto, senão um corpo de subjectividade deliberada, uma narrativa de desejo encenada por um indivíduo expectante do que ele gera no seu próprio interior e acciona no exterior?" - indagou-se ao mesmo tempo que fixava a fotografia do olhar masculino ampliada no papel.
Manuela ergueu a cabeça, endireitou as costas, acendeu um cigarro e reparou que o centro comercial estava quase vazio. Quedou-se no que lera e mentalmente se desencadeara em si.
Um átrio amplo e confuso. Envidraçados multicolores, ferros brilhantes que deturpavam a racionalidade espacial. Lojas e lojas. À beira da comida opulenta jovens estilizados sustinham com os sorrisos fatigados uma espécie de boinas amuadas na cabeça.
Aquela grande montra que de dia nos seduzia a habitá-la por parecer excitante, agora, naquele momento da noite abandonada pelos transeuntes solitários e pelo operariado citadino, respirava-se entre o decadente e o desinfectado protector.
No espaço desmesurado e impróprio para o ritual apaziguador de uma refeição, dezenas de mesas lavadas e cadeiras brilhantes sem par encostavam-se à sombra dos pilares e descansavam os pés por entre embalagens sujas de comida e beatas largadas que sucessivamente eram recolhidas por um exército de limpeza.
"O que temos nós para dar aos outros sem vaidade?" - reagia Manuela em sintonia com o professor.
«(...) Além disso sou naturalmente muitas outras coisas. A incapacidade de condensar toda essas coisas comuns numa definição é decerto comum a toda a gente. Há características próprias das pessoas, é claro, mas não sei se por aí se pode chegar a uma ideia de quem somos. Se eu disser que tento perceber e não perder nada do que se passa à minha volta, isto ajuda a definir quem eu sou? O que me levou a definir-me pelo que faço tem a ver com uma apreciação do profissionalismo como valor.»
A entrevista era conduzida pela primeira intelectual portuguesa da geração dos anos quarenta (nascida no capim africano) a conseguir com classe um cabelo demasiado curto para um rosto feminino e sem parecer saída de um anúncio da velha Olex ou como protagonista das tendências feministas desses tempos (como a carapinha da Lara Lee ou a feição masculinizada da estridente e aguda Ellis Regina).
Registe-se também que a dita senhora tem ainda a acrescentar às suas virtudes a semelhança espantosa com "O Menino e a Pomba" do período azul de Picasso.
"O que somos... O que configuramos intrínseco?..." - registou Manuela para si.
Questões como estas tentavam sobreviver em cerca de oito páginas propositadamente produzidas a preto e branco para a narrativa íntima e sem que o professor de literatura e a jornalista - que nunca foi formada em tal categoria - chegassem sequer a beliscá-las. Por vezes parecem tabu ou coisa do campo do sagrado inatingível.
Na verdade, a sua dimensão oculta (normalmente disfarçada de assunto trivial e inútil) parece necessitar mais da reflexão do Homem do que este dela própria, mesmo quando bailada em simples conversa.
Manuela penetrou imediatamente no texto assim que lera que «um autor maior é aquele que introduz alterações maciças da consciência».
A cacofonia produzida pelas empregadas no recolher dos pratos, dos talheres e dos copos fez-se distante e tão longe como um som de automóvel violado na noite incauta da rua esvaziada.
Deixara-a curiosa que um especialista das Letras e afins, quando interrogado sobre a qualidade de determinada Obra, negligenciasse a sua realidade e essência humana e se propusesse destrinçar directamente a (im)pessoalidade do próprio autor por considerar residir na sua identidade exclusiva a "chave" para o entendimento e interpretação do objecto literário que criou.
«Uma das coisas que para mim é central na leitura é perceber qual é a cara da pessoa que escreve(...). Há um momento em que julgo perceber quem é a pessoa do outro lado».
"Um texto... Um autor... Onde começa um e acaba o outro?" - pensou desconfiada com o que lhe parecia pecar por excessiva relatividade.
"O que é o texto, senão um corpo de subjectividade deliberada, uma narrativa de desejo encenada por um indivíduo expectante do que ele gera no seu próprio interior e acciona no exterior?" - indagou-se ao mesmo tempo que fixava a fotografia do olhar masculino ampliada no papel.
Manuela ergueu a cabeça, endireitou as costas, acendeu um cigarro e reparou que o centro comercial estava quase vazio. Quedou-se no que lera e mentalmente se desencadeara em si.
Um átrio amplo e confuso. Envidraçados multicolores, ferros brilhantes que deturpavam a racionalidade espacial. Lojas e lojas. À beira da comida opulenta jovens estilizados sustinham com os sorrisos fatigados uma espécie de boinas amuadas na cabeça.
Aquela grande montra que de dia nos seduzia a habitá-la por parecer excitante, agora, naquele momento da noite abandonada pelos transeuntes solitários e pelo operariado citadino, respirava-se entre o decadente e o desinfectado protector.
No espaço desmesurado e impróprio para o ritual apaziguador de uma refeição, dezenas de mesas lavadas e cadeiras brilhantes sem par encostavam-se à sombra dos pilares e descansavam os pés por entre embalagens sujas de comida e beatas largadas que sucessivamente eram recolhidas por um exército de limpeza.
"O que temos nós para dar aos outros sem vaidade?" - reagia Manuela em sintonia com o professor.
A intelectual insistia no tema do "mérito de Autor" e menosprezava o do "âmbito da Obra", conteúdo malogrado que só sobrevivia na crítica interessada da leitora.
Espalhados pela arquitectura inconveniente à desolação nocturna, algumas pessoas.
Uma mulher madura, três homens tão maduros quanto ela espalhados pelos ângulos marmóreos, um jovem de olhar siderado e sinistro a braços com uma insensível imperial de plástico e Manuela com o texto existencialista que perdera logo pela terceira página o norte da literatura vrs objecto literário a que se propusera.
O professor saltou da revista e sentou-se à sua beira e numa mesa só.
Manuela observava-o, ou melhor, observava e perscrutava a mudez daquelas pessoas em redor de si.
- O que farão homens sozinhos num lugar de convívio? O que farão mulheres sem fome numa mesa de um fast food? - perguntou ao professor.
Não estás a ver bem as coisas - respondeu-lhe - Olha bem para eles.
Manuela descomprimiu minuciosamente o corpo como se o raciocínio do professor dependesse da complexidade física dos seus músculos e ossos em contemplação.
«Uma das coisas que para mim é central na leitura é perceber qual é a cara da pessoa que escreve (num sentido fisionómico peculiar, já que sou um leitor cego. Não alucino as cenas que leio num romance).Tento saber o que é que faz aquela cabeça funcionar. Enquanto se mantém insondável, vou ficando pacientemente à espera. Há um momento que julgo perceber quem é a pessoa do outro lado. Com o cinema passa-se a mesma coisa; não quero ver um filme se não tiver visto o primeiro plano, não por purismo cinéfilo, que não tenho, mas por ser desse plano, ou contra ele, que todos os outros se engendram» - ecoou das folhas impressas.
Manuela voltou a imobilizar-se direita sobre as costas da cadeira, acendeu outro cigarro, expeliu o fumo e, inadvertidamente, cruzou-se com o olhar do jovem misterioso que também reparara em si há uns minutos.
Constrangida, fingiu bocejar e coçar o nariz como era de seu hábito quando se perdia a observar os estranhos nos cafés ou transportes públicos.
O professor sumiu-se.
Procurou-o na mesa.
No quadrado cinzento emoldurado por perfis laminados os cigarros tranquilizavam-se com o vício e o copo de plástico parecia prestar-se à queda no chão, inútil que estava por vazio de água.
Ao lado de ambos, folhas densas de texto engoliam belíssimas fotografias cinzentas de um homem novo e charmoso pelos cabelos brancos em demasia.
A leitura concentrada da revista era inevitável. Como não o podia ser, trasbordante que era das sensibilidades mais familiares de Manuela?
No primeiro plano apresentava-se um perfil em sombra acenando com um parágrafo incompleto sobre uma hipotética psicose de Hamlet.
Teatro! Teatro!
O segundo plano baixava o pano e descobria o protagonista através dos olhos amendoados e escuros, dando a impressão de quem não está confortável em ser o centro das atenções.
No terceiro, a seguir, mantinha-se a ilusão cénica mas já se oferecia um pouco mais do entrevistado em estudadas perguntas com o verbo insistente da segunda pessoa sempre a iniciá-las: «Diz-me (...)», «Estás-me (...)», «Começas-te (...)», «O que é para ti (...)».
O quarto e último só podia ser daquela maneira, bem ao jeito da jornalista conhecida como a primeira intelectual gaga, televisiva e tão snob quanto excelente em inteligência e coerência comunicacional.
No final das oito páginas um corpo masculino a três quartos dispunha-se com naturalidade numa cadeira de praia transformada em cadeirão e permitia-nos aferir da sua intimidade simples onde só tinham lugar livros e mesas para receber esses livros. Textos cercavam-no no chão e em cima de si. Envolviam-no por dentro e fora da sua fotografia crua.
Manuela lia com as palmas das mãos como que coladas áquele cinzentismo todo, mesmo sabendo que a genialidade do que quer que seja nunca está nas evidências. Percorria o cochet dos parágrafos sofregamente como que enfeitiçada pelo rosto da entrevista e rosto do Texto:
«Há, de facto, um domínio em que a nossa relação com um texto depende de pertencermos, ou não, àquela família».
Texto desejado por familiar. Texto viciante por esteta. Texto afectivo por solitário.
Manuela guardou a revista, voltou-se para os estranhos á sua volta, centrou o olhar para si própria mantendo o ângulo de visão a 180º e reconheceu-se nos outros.
O que antes lhe pareceram rostos perdidos no espaço ilusoriamente infinito e confuso do centro comercial, tratavam-se simplesmente de rostos presos à sua circunstância de textos estáticos.
Pegou nos cigarros, no casaco e na revista. Atravessou o átrio amplo e desapareceu na sua noite escrita.
Espalhados pela arquitectura inconveniente à desolação nocturna, algumas pessoas.
Uma mulher madura, três homens tão maduros quanto ela espalhados pelos ângulos marmóreos, um jovem de olhar siderado e sinistro a braços com uma insensível imperial de plástico e Manuela com o texto existencialista que perdera logo pela terceira página o norte da literatura vrs objecto literário a que se propusera.
O professor saltou da revista e sentou-se à sua beira e numa mesa só.
Manuela observava-o, ou melhor, observava e perscrutava a mudez daquelas pessoas em redor de si.
- O que farão homens sozinhos num lugar de convívio? O que farão mulheres sem fome numa mesa de um fast food? - perguntou ao professor.
Não estás a ver bem as coisas - respondeu-lhe - Olha bem para eles.
Manuela descomprimiu minuciosamente o corpo como se o raciocínio do professor dependesse da complexidade física dos seus músculos e ossos em contemplação.
«Uma das coisas que para mim é central na leitura é perceber qual é a cara da pessoa que escreve (num sentido fisionómico peculiar, já que sou um leitor cego. Não alucino as cenas que leio num romance).Tento saber o que é que faz aquela cabeça funcionar. Enquanto se mantém insondável, vou ficando pacientemente à espera. Há um momento que julgo perceber quem é a pessoa do outro lado. Com o cinema passa-se a mesma coisa; não quero ver um filme se não tiver visto o primeiro plano, não por purismo cinéfilo, que não tenho, mas por ser desse plano, ou contra ele, que todos os outros se engendram» - ecoou das folhas impressas.
Manuela voltou a imobilizar-se direita sobre as costas da cadeira, acendeu outro cigarro, expeliu o fumo e, inadvertidamente, cruzou-se com o olhar do jovem misterioso que também reparara em si há uns minutos.
Constrangida, fingiu bocejar e coçar o nariz como era de seu hábito quando se perdia a observar os estranhos nos cafés ou transportes públicos.
O professor sumiu-se.
Procurou-o na mesa.
No quadrado cinzento emoldurado por perfis laminados os cigarros tranquilizavam-se com o vício e o copo de plástico parecia prestar-se à queda no chão, inútil que estava por vazio de água.
Ao lado de ambos, folhas densas de texto engoliam belíssimas fotografias cinzentas de um homem novo e charmoso pelos cabelos brancos em demasia.
A leitura concentrada da revista era inevitável. Como não o podia ser, trasbordante que era das sensibilidades mais familiares de Manuela?
No primeiro plano apresentava-se um perfil em sombra acenando com um parágrafo incompleto sobre uma hipotética psicose de Hamlet.
Teatro! Teatro!
O segundo plano baixava o pano e descobria o protagonista através dos olhos amendoados e escuros, dando a impressão de quem não está confortável em ser o centro das atenções.
No terceiro, a seguir, mantinha-se a ilusão cénica mas já se oferecia um pouco mais do entrevistado em estudadas perguntas com o verbo insistente da segunda pessoa sempre a iniciá-las: «Diz-me (...)», «Estás-me (...)», «Começas-te (...)», «O que é para ti (...)».
O quarto e último só podia ser daquela maneira, bem ao jeito da jornalista conhecida como a primeira intelectual gaga, televisiva e tão snob quanto excelente em inteligência e coerência comunicacional.
No final das oito páginas um corpo masculino a três quartos dispunha-se com naturalidade numa cadeira de praia transformada em cadeirão e permitia-nos aferir da sua intimidade simples onde só tinham lugar livros e mesas para receber esses livros. Textos cercavam-no no chão e em cima de si. Envolviam-no por dentro e fora da sua fotografia crua.
Manuela lia com as palmas das mãos como que coladas áquele cinzentismo todo, mesmo sabendo que a genialidade do que quer que seja nunca está nas evidências. Percorria o cochet dos parágrafos sofregamente como que enfeitiçada pelo rosto da entrevista e rosto do Texto:
«Há, de facto, um domínio em que a nossa relação com um texto depende de pertencermos, ou não, àquela família».
Texto desejado por familiar. Texto viciante por esteta. Texto afectivo por solitário.
Manuela guardou a revista, voltou-se para os estranhos á sua volta, centrou o olhar para si própria mantendo o ângulo de visão a 180º e reconheceu-se nos outros.
O que antes lhe pareceram rostos perdidos no espaço ilusoriamente infinito e confuso do centro comercial, tratavam-se simplesmente de rostos presos à sua circunstância de textos estáticos.
Pegou nos cigarros, no casaco e na revista. Atravessou o átrio amplo e desapareceu na sua noite escrita.
Quem sabe se pelas mesmas razões que impeliram aqueles estranhos "opacos" de Manuela a encontrarem-se num centro comercial inócuo e despido de personalidade nocturna. Quem sabe...