4.01.2006

7.
Num plano de páginas duplas sobredimensionadas pela brancura fora do comum das revistas de imprensa, um rosto masculino inquietava-se com uma particular meia dúzia de linhas do resto do conteúdo dos grandes parágrafos pretos.
«(...) Além disso sou naturalmente muitas outras coisas. A incapacidade de condensar toda essas coisas comuns numa definição é decerto comum a toda a gente. Há características próprias das pessoas, é claro, mas não sei se por aí se pode chegar a uma ideia de quem somos. Se eu disser que tento perceber e não perder nada do que se passa à minha volta, isto ajuda a definir quem eu sou? O que me levou a definir-me pelo que faço tem a ver com uma apreciação do profissionalismo como valor.»
A entrevista era conduzida pela primeira intelectual portuguesa da geração dos anos quarenta (nascida no capim africano) a conseguir com classe um cabelo demasiado curto para um rosto feminino e sem parecer saída de um anúncio da velha Olex ou como protagonista das tendências feministas desses tempos (como a carapinha da Lara Lee ou a feição masculinizada da estridente e aguda Ellis Regina).
Registe-se também que a dita senhora tem ainda a acrescentar às suas virtudes a semelhança espantosa com "O Menino e a Pomba" do período azul de Picasso.
"O que somos... O que configuramos intrínseco?..." - registou Manuela para si.
Questões como estas tentavam sobreviver em cerca de oito páginas propositadamente produzidas a preto e branco para a narrativa íntima e sem que o professor de literatura e a jornalista - que nunca foi formada em tal categoria - chegassem sequer a beliscá-las. Por vezes parecem tabu ou coisa do campo do sagrado inatingível.
Na verdade, a sua dimensão oculta (normalmente disfarçada de assunto trivial e inútil) parece necessitar mais da reflexão do Homem do que este dela própria, mesmo quando bailada em simples conversa.
Manuela penetrou imediatamente no texto assim que lera que «um autor maior é aquele que introduz alterações maciças da consciência».
A cacofonia produzida pelas empregadas no recolher dos pratos, dos talheres e dos copos fez-se distante e tão longe como um som de automóvel violado na noite incauta da rua esvaziada.
Deixara-a curiosa que um especialista das Letras e afins, quando interrogado sobre a qualidade de determinada Obra, negligenciasse a sua realidade e essência humana e se propusesse destrinçar directamente a (im)pessoalidade do próprio autor por considerar residir na sua identidade exclusiva a "chave" para o entendimento e interpretação do objecto literário que criou.
«Uma das coisas que para mim é central na leitura é perceber qual é a cara da pessoa que escreve(...). Há um momento em que julgo perceber quem é a pessoa do outro lado».
"Um texto... Um autor... Onde começa um e acaba o outro?" - pensou desconfiada com o que lhe parecia pecar por excessiva relatividade.
"O que é o texto, senão um corpo de subjectividade deliberada, uma narrativa de desejo encenada por um indivíduo expectante do que ele gera no seu próprio interior e acciona no exterior?" - indagou-se ao mesmo tempo que fixava a fotografia do olhar masculino ampliada no papel.
Manuela ergueu a cabeça, endireitou as costas, acendeu um cigarro e reparou que o centro comercial estava quase vazio. Quedou-se no que lera e mentalmente se desencadeara em si.
Um átrio amplo e confuso. Envidraçados multicolores, ferros brilhantes que deturpavam a racionalidade espacial. Lojas e lojas. À beira da comida opulenta jovens estilizados sustinham com os sorrisos fatigados uma espécie de boinas amuadas na cabeça.
Aquela grande montra que de dia nos seduzia a habitá-la por parecer excitante, agora, naquele momento da noite abandonada pelos transeuntes solitários e pelo operariado citadino, respirava-se entre o decadente e o desinfectado protector.
No espaço desmesurado e impróprio para o ritual apaziguador de uma refeição, dezenas de mesas lavadas e cadeiras brilhantes sem par encostavam-se à sombra dos pilares e descansavam os pés por entre embalagens sujas de comida e beatas largadas que sucessivamente eram recolhidas por um exército de limpeza.
"O que temos nós para dar aos outros sem vaidade?" - reagia Manuela em sintonia com o professor.
A intelectual insistia no tema do "mérito de Autor" e menosprezava o do "âmbito da Obra", conteúdo malogrado que só sobrevivia na crítica interessada da leitora.
Espalhados pela arquitectura inconveniente à desolação nocturna, algumas pessoas.
Uma mulher madura, três homens tão maduros quanto ela espalhados pelos ângulos marmóreos, um jovem de olhar siderado e sinistro a braços com uma insensível imperial de plástico e Manuela com o texto existencialista que perdera logo pela terceira página o norte da literatura vrs objecto literário a que se propusera.
O professor saltou da revista e sentou-se à sua beira e numa mesa só.
Manuela observava-o, ou melhor, observava e perscrutava a mudez daquelas pessoas em redor de si.
- O que farão homens sozinhos num lugar de convívio? O que farão mulheres sem fome numa mesa de um fast food? - perguntou ao professor.
Não estás a ver bem as coisas - respondeu-lhe - Olha bem para eles.
Manuela descomprimiu minuciosamente o corpo como se o raciocínio do professor dependesse da complexidade física dos seus músculos e ossos em contemplação.
«Uma das coisas que para mim é central na leitura é perceber qual é a cara da pessoa que escreve (num sentido fisionómico peculiar, já que sou um leitor cego. Não alucino as cenas que leio num romance).Tento saber o que é que faz aquela cabeça funcionar. Enquanto se mantém insondável, vou ficando pacientemente à espera. Há um momento que julgo perceber quem é a pessoa do outro lado. Com o cinema passa-se a mesma coisa; não quero ver um filme se não tiver visto o primeiro plano, não por purismo cinéfilo, que não tenho, mas por ser desse plano, ou contra ele, que todos os outros se engendram» - ecoou das folhas impressas.
Manuela voltou a imobilizar-se direita sobre as costas da cadeira, acendeu outro cigarro, expeliu o fumo e, inadvertidamente, cruzou-se com o olhar do jovem misterioso que também reparara em si há uns minutos.
Constrangida, fingiu bocejar e coçar o nariz como era de seu hábito quando se perdia a observar os estranhos nos cafés ou transportes públicos.
O professor sumiu-se.
Procurou-o na mesa.
No quadrado cinzento emoldurado por perfis laminados os cigarros tranquilizavam-se com o vício e o copo de plástico parecia prestar-se à queda no chão, inútil que estava por vazio de água.
Ao lado de ambos, folhas densas de texto engoliam belíssimas fotografias cinzentas de um homem novo e charmoso pelos cabelos brancos em demasia.
A leitura concentrada da revista era inevitável. Como não o podia ser, trasbordante que era das sensibilidades mais familiares de Manuela?
No primeiro plano apresentava-se um perfil em sombra acenando com um parágrafo incompleto sobre uma hipotética psicose de Hamlet.
Teatro! Teatro!
O segundo plano baixava o pano e descobria o protagonista através dos olhos amendoados e escuros, dando a impressão de quem não está confortável em ser o centro das atenções.
No terceiro, a seguir, mantinha-se a ilusão cénica mas já se oferecia um pouco mais do entrevistado em estudadas perguntas com o verbo insistente da segunda pessoa sempre a iniciá-las: «Diz-me (...)», «Estás-me (...)», «Começas-te (...)», «O que é para ti (...)».
O quarto e último só podia ser daquela maneira, bem ao jeito da jornalista conhecida como a primeira intelectual gaga, televisiva e tão snob quanto excelente em inteligência e coerência comunicacional.
No final das oito páginas um corpo masculino a três quartos dispunha-se com naturalidade numa cadeira de praia transformada em cadeirão e permitia-nos aferir da sua intimidade simples onde só tinham lugar livros e mesas para receber esses livros. Textos cercavam-no no chão e em cima de si. Envolviam-no por dentro e fora da sua fotografia crua.
Manuela lia com as palmas das mãos como que coladas áquele cinzentismo todo, mesmo sabendo que a genialidade do que quer que seja nunca está nas evidências. Percorria o cochet dos parágrafos sofregamente como que enfeitiçada pelo rosto da entrevista e rosto do Texto:
«Há, de facto, um domínio em que a nossa relação com um texto depende de pertencermos, ou não, àquela família».
Texto desejado por familiar. Texto viciante por esteta. Texto afectivo por solitário.
Manuela guardou a revista, voltou-se para os estranhos á sua volta, centrou o olhar para si própria mantendo o ângulo de visão a 180º e reconheceu-se nos outros.
O que antes lhe pareceram rostos perdidos no espaço ilusoriamente infinito e confuso do centro comercial, tratavam-se simplesmente de rostos presos à sua circunstância de textos estáticos.
Pegou nos cigarros, no casaco e na revista. Atravessou o átrio amplo e desapareceu na sua noite escrita.
Quem sabe se pelas mesmas razões que impeliram aqueles estranhos "opacos" de Manuela a encontrarem-se num centro comercial inócuo e despido de personalidade nocturna. Quem sabe...

3.06.2006

6.

A Imobiliária constituiu-se há cerca de três anos na Conservatória do IV Bairro Fiscal de Lisboa e com sede legal ainda desconhecida que viria mais tarde ganhar fachada na Rua Maria da Fonte da freguesia dos Anjos.
Das poucas dúvidas que não há do liberalismo económico é, por exemplo, este aspecto ‘edificador’ ou ‘não-edificado’ e que serve o arranque das pequenas e médias empresas cujo capital é relativo por quase fantasma.
Os actuais modelos económicos do capitalismo avançado são tão responsáveis pelo genocídio tecnológico de determinadas indústrias fundamentais, como o são pela proliferação do 'novo comércio' das zonas urbanas.
São-no pela deslocação de pólos industriais estratégicos para fora de um país, como o são pela liberalização do crédito bancário ao mais modesto contribuinte e potencial negociante.
Assim, seis meses antes de na realidade poder montar banca, Jorge já transaccionava valores de negócio para as finanças do estado.
Seis meses antes de sede reconhecida, a Imobiliária tinha lugar no espaço virtual e telecomunicado da pessoa de nome Jorge Guimarães, filho de Afonso Rebêlo Guimarães e Maria Josefa Fontana, nascidos ambos em Lisboa.
Quando não existem à posteriori premissas vocacionais no indivíduo, restam apenas duas dimensões profissionais à sua imaginação: trabalhar por conta de outrém numa profissão que não exija domínios especializados e com base nos critérios comuns do que significa o melhor salário, ambiente, local, etc, ou promover o auto-emprego nas áreas do utilitarismo social.
Jorge - único descendente do salvado dos Fontana - viria a optar pela segunda premissa. Não se apercebendo, essa funcionalidade objectiva viria a determinar-lhe a quase maioria das suas opções na vida e moldar-lhe-iam o seu carácter difuso de classe média urbana.
A Imobiliária não representava uma ambição concreta ou um ideal subjectivado por qualquer moda ou tendência, apenas uma das alternativas concretas na actual economia combalida que só conseguia proporcionar - a quem não possuísse, à partida, de capital próprio - aritméticas para o empreendedorismo fácil. Uma espécie de arquétipo económico da época, como o já foram os alvarás de táxis, as casas de frango de churrasco ou modestas tabacarias.
Jorge não possuía qualquer formação académica para lá da escolaridade inconsistente do 12º ano e dos seus conhecimentos dispersos num punhado de ciências que contribuem para a formação sociocultural do aluno mas não servem para revelar as suas aptidões profissionais que a sociedade tanto exige naquele momento que se assumam e se anunciem.
Á beira da universidade e da especialização produtiva que esta promete, não foi difícil ao empresário optar pelo rumo de um futuro adiantado.
O seu sentido era mais que óbvio e as contas fáceis para o seu raciocínio imaturo.
Não se entregando a idealismos - não porque não o desejasse mas porque a sua educação não o permitia - o finalista da escolaridade mínima imaginou o esforço financeiro que significavam 4/5 anos de um curso superior. Somou-lhe mais uns quantos de colocação incerta no mercado de emprego e fez a seguir a média anual do custo desse privilégio do desenvolvimento.
Calculou a sua taxa de esforço e subtraíu-a aos modestos rendimentos dos Fontana.
Como em qualquer família, senão a maioria delas, verificou um rácio deveras injusto e quase sempre devedor.
Nesse momento difícil coube a Jorge Guimarães apenas a consciência de si próprio. Saber se o seu desejo era dominar o mundo através das potenciais aptidões académicas ou dominá-lo enquanto elemento integrante da sua própria eficiência.
Alguns anos mais tarde - depois de várias experiências não menos interessantes - o empresário concentraria todo o seu empenho e dedicação futura ao que lhe pareceu ser a recompensa mais aproximada do que lhe era possível imaginar se tivesse continuado os estudos inteligentes da faculdade: A IMOBILIÁRIA.
O empresário recorreu ao banco democrático e foi-lhe permitida a oportunidade financeira como direito natural.
Jorge Guimarães, filho de Afonso Rebêlo Guimarães e Maria Josefa Fontana, dava início à caminhada da prosperidade proporcionada pelas novas economias do utilitarismo moderno.
Bastou-lhe apenas espreitar um jornal largado sobre um banco do Metro e onde se podia ler: «O sector da mediação mobiliária é um sector um pouco desorganizado. Há pessoas para as quais esta actividade está mais indicada do que para outras. Ainda assim, podem-se desenvolver competências e superar dificuldades... O que é importante É QUE NÃO SE NASCE EMPREENDEDOR, MAS, PELO CONTRÁRIO, PODE-SE APRENDER A SÊ-LO!»

12.30.2005


5.
A porta do n.º 117 da Rua do Terreirinho guardava um indivíduo à volta dos 50 anos, vestido informalmente e com uma de pasta Ice Tea esverdeada cujo fecho desdentado deixava espreitar folhas demasiado apertadas.
- Estou? João?... Espera... - acelerou o passo e esticou o pescoço - Sr. Jorge? - sorriu - Estamos ainda longe?
- Se é importante atenda. É já ali. Vê? - e apontou para uma porta verde-garrafa ao fundo da rua - Eu vou andando.
Joana parou e com os jeitos próprios das raparigas novas e vaidosas flectiu uma perna, dobrou ligeiramente a cintura e com a mão livre ergueu divertida e em pose o telemóvel.
Junto à entrada profusamente talhada e com aço a envolvê-la até ao cimo do seu pé demasiado alto para citadinos de estatura média, os negociantes cumprimentaram-se e viraram-se para o horizonte da jovem que vinha ao encontro de ambos.
- São estas as chaves? Muito bem... Os registos de propriedade, os... e..., parece-me que está tudo em ordem. A minha secretária vai, entretanto, telefonar-lhe para confirmar os valores da venda. Nós ficamos mais um pouco. Obrigado.
- Muito boa tarde então!
O homem despediu-se de Jorge com um aperto de mão protocolar e outro mais indiferente para com a jovem amigável e encostada ao silêncio desinteressado. Entraram e subiram a escadaria sofisticada.
- 50 Metros quadrados pós-pombalinos, 2 assoalhadas pequenas e uma mais digna para estar..., uma casa de banho renovada e... uma cozinha quase primitiva. O que é que acha?
- Acho? Quer dizer... -
“o que é que eu acho?” pensou - Acho velha e pequena. Simpática, mas velha e pequena - “o que é que há aqui?” perguntou-se Joana.
- É neste preciso momento que é importante memorizar o imóvel.
- Claro. O que é que o Sr. Jorge esperava que achasse?
O 3.º andar da rua estreita não deixava o sol farto entrar e simulava antes do tempo o crepúsculo do dia. De facto não parecia haver muito mais a dizer mas, entretanto, Jorge cirandava pelas tábuas do chão como se o esperasse alguma surpresa.
- Quando a Joana comprar a sua casa... Já tem casa?
- Não - “acabei a faculdade e já tenho casa?” atirou para si - Não, claro que não. Mas...
- Vender casas é um negócio especial. Repare, não nos limitamos a vender o produto - Jorge balançou corpo - vendemos acima de tudo uma ideia do que aqui se pode construir como lar e, amanhã, suscitar a vontade de crescer em família ou reservar individualista ao exterior.
Tudo parecia lógico só que Joana não entendia o que lhe faltava percepcionar naquele preciso momento e que respirava por entre as paredes mortiças e baças.
- Quando vai comprar roupa o que é a faz escolher entre esta ou aquela peça? E quando são as duas diferentes e sem comparação o que é faz? - parou e fixou-a até a assustar.
No caminho de volta à agência nenhum dos dois se encarava. Jorge conduzia zeloso e Joana ausentava-se do automóvel como que preocupada.
“O silêncio denuncia-me”, pensou aflita sem conseguir contrariar essa emoção. Recuou na memória, visualizou o espaço e ainda assim não era claro o que era suposto ter interpretado.
Não conseguia. “Chegámos, entrámos num espaço muito pequeno de estilo pobre e despojado dos décors da época que não oferecia nada do que a mim e a qualquer um interessa realmente. A casa de banho mal pode com os sanitários, a cozinha mete dó e o resto... O resto? O resto é madeira velha e cal rala a envergonhar os quartos onde não cabe um roupeiro. Talvez uma cómoda... nem isso! O que é que ele viu ali que eu não vi?”
Á medida que o rosto cismado da jovem parecia desejar saltar janela fora do automóvel, Jorge estudava sereno a frustração juvenil sem dar a entendê-lo. Sabia que a casa não tinha nada de particular e não havia qualquer magia para descobri-lo.
Havia, isso sim, um procedimento certo para o impacto da primeira visita ao imóvel. Se não, como vender dezenas por ano, todos diferentes e para clientes também diferentes entre si?
Ora, o segredo não estava de facto no espaço físico, mas na sua envolvência estimulada pelo vendedor aos compradores quando abrem as portas do que pode vir a ser a sua casa!
O procedimento não estava realmente à vista, mas recolhido na sensibilidade do angariador apto a tornar o imóvel desejado porque induziu ao cliente expectante a dimensão da intimidade e uma espécie de reconhecimento pessoal que sabemos perdoar e descurar a falta de segurança, a ausência de tecnologia ou, porque não, a evidente inadaptabilidade do imóvel!
Jorge divertia-se e a estagiária sentia-se ameaçada por qualquer coisa indefinida mas que sabia concreta porque perturbava-a e não tinha domínio sobre a sua própria reacção a ela.

12.27.2005


4.
No exíguo átrio um cliente em pé e outro sentado.
Manuela confirmava uma eficácia fora do comum para uma empresa de estrutura mais familiar que tecnológica.
O telefone ao ouvido com poucas palavras e menos ainda para o homem à mesa a quem ofereceu um formulário para preencher.
- Se me der o seu contacto telefono-lhe daqui a alguns minutos para lhe dar a bolsa imobiliária... Sim... Claro.. Obrigado, então até já.
Pousou o auscultador e ligou o gravador de chamadas de design obsoleto ao mesmo tempo que se levantava para atender o cliente em pé.
- Sente-se aqui por favor. Preencha estes impressos se não se importa.
Hesitou e pareceu aparentemente baralhada. Em pé, de papéis na mão, reparou que o profissionalismo lhe levantara a saia evasé e deixara a descoberto os joelhos de pele impecável.
Ciosa da sua frescura desfez o rodopio e sorriu muito profissional aos clientes que aguardavam o rubor da exposição.
- Sente-se. Um momento! - reparando que a única cadeira livre estava ocupada pelos pertences da estagiária.
Um segundo de hesitação nada mais e a ideia tão rápida quanto o desejo invejoso pela bolsa de Joana.
Voltou-se, pousou as folhas e desta vez muito lenta (sem que os clientes dessem por tal) procurou-a para si. Tomou-lhe o peso como só a sensibilidade feminina sabe fazer e no intervalo voador entre o apoio mais próximo e a cadeira liberta da matéria estagiante pôde observar em rigor o que ela continha: “carteira, baton, Tampax, agenda telefónica, perfume-oferta da Nívea e... um par de cuecas... UMAS CUECAS?!”.
“Inúteis”, pensou primeiro. “Familiares” concluiu depois. Sorriu delatora porque, assim de repente, não se lembrava exactamente quando negligenciara a sua própria bagagem, nem porquê.
“Carteira, Dom Quixote traduzido por Aquilino Ribeiro, um bloco de apontamentos de capa dura, uma lapiseira Rotring de carvão grosso e macio, pensos higiénicos. Sim, pensos higiénicos e cigarros”, recordou como seus haveres e penitenciou um aborrecimento doloroso.
O segundo homem sentado pediu uma caneta que já se encontrava a seu caminho e na única mão livre daquela dança toda.
Manuela não era velha. Também não era nova mas ainda estava longe de se considerar demasiado vivida nos 37 anos preservados do mundanismo erótico da roupa demasiado justa ou demasiado lassa que nem sempre poupa a firmeza ou o toque aveludado da pele. Tinha consciência disso e orgulhava-se.
“As mulheres não sabem explicar porque é que, um dia qualquer e perdido o brio e auto-estima, trocam de repente o tampão imperceptível à mão da exploração masculina pelo penso higiénico desagradável. Porque num dia toldado pela solidão ou abandono renegam uma agenda telefónica e a certeza dos laços estabelecidos em histórias que preferem passar a lembrar nos livros utópicos e traiçoeiros.
Ou porque é que desleixam o baton e o perfume que decoram e refrescam o seu anonimato. Ou que as fantasiam na sua justiça de se sentirem desejadas e desejarem enfeitiçar os homens“.
Enquanto melindrada, o cliente à sua beira levantou-se e o outro, ainda sentado, olhou-a.
- Obrigado, telefono-lhe depois para lhe dizer alguma coisa - Manuela olhou a seguir para o outro que se levantara em sequência - Obrigado... Um momento! A caneta? Obrigado, boa tarde!

11.17.2005


3.
Um empresário tem duas prerrogativas fundamentais para sobreviver no mercado competitivo do consumidor caprichoso e da economia global que não dá almoços grátis nem aos próprios patronos da sua capacidade geradora.
Consta que o segredo do bom negócio está entre a necessidade constante do produto e a apetência do negociante para a engenharia financeira que possibilita a médio prazo consolidar sempre uma diferença majoritária de capital liquidado em relação ao investimento feito.
Para Jorge, este equilíbrio frágil entre as receitas e as despesas, entre a qualidade e a expansão da máquina produtiva e entre as mais-valias que fazem os homens ricos e o serviço à comunidade ansiosa por gastar, “era como gerir o vício tabagista”.
Ninguém dava por este exercício quase freudiano com os cigarros, nem mesmo Manuela. Só muito mais tarde, aquando lhe parecia partilhar da sua intimidade, notara que era real e racionalizado e não um recurso hedonista de sedução.
De facto, da imagem pública do pequeno empresário não consta o gesto fumador que interrompe constante e viciosamente o diálogo ou a atenção mais descomprometida.
“Antes mesmo de se fumar, primeiro o cigarro como que nos fuma parte da essência do próximo gesto ou a possibilidade de percepcioná-lo nos outros. Uma acção aglutinadora. Do ponto de vista histórico, o cigarro ou a coisa que se fuma está presente em vários momentos e personalidades históricas, como Sir Winston Churchill, os grandes chefes índios em reunião com os colonos americanos ou o ópio sublimador da alma asiática”, dizia Jorge.
- É por isso que costuma andar com um cigarro? Um único?
- Bem... Um, dois. Mas nunca mais que três! É como que um teste de disciplina Manuela. Enquanto eu tiver ciente da fatalidade a que o meu prazer se sujeita se fumar levianamente os únicos cigarros que possuo, esta empresa crescerá com saúde.
Alguns empresários não têm como necessário, mas deviam. Para gerir o equipamento humano é preciso acima de tudo que nunca se menosprezem as hierarquias inteligentes e não deixar a suspeita aos subordinados de que são apenas um operariado sem rosto e desvinculado emocionalmente das suas tarefas.
Jorge, sem qualquer formação específica microeconómica ou empresarial, estava consciente disso e quando decidiu contratar uma secretária assegurou que, fosse qual fosse o seu perfil particular, ele devia ser permeável para a empresa poder absorvê-lo proficuamente, ao invés de ‘apagá-lo‘ até a frustração tomar conta da competência do próprio e, a seguir, da eficácia do serviço.
Antes da agência, Manuela trabalhava num centro de documentação de uma grande empresa estatal, a REFER. Depois de 6 anos a sentir-se ‘rato de biblioteca’, entendera que se o seu trabalho era tão triste e solitário numa verdadeira biblioteca onde livros e gente eram o cerne das suas tarefas, então desejava fazer outra coisa qualquer e, sem medo algum da precipitação, cega decidira responder ao anúncio da imobiliária.
Quando na entrevista lhe perguntaram porquê aquele ramo de negócio ela, naïfe do discurso adequado, só soube dizer:
- Bem, excluindo a minha área académica, só posso ser também competente no que participe dos meus valores. E em relação às casas, um espaço humano e uma referência de cultura social, acredito que possa aprender e...
Nesse preciso momento Jorge levantou-se, deu indicações para continuarem as entrevistas e convidou Manuela para passar ao seu escritório.
Puxou-lhe a cadeira para trás como um empregado de restaurante, sentou-se e ofereceu-lhe um cigarro ao que ela recusou.
- Obrigada. Agora não.
Ele também não fumou e olhou para ela disfarçando essa análise com fingidos arrumos no que estava sobre a secretária.
- Então sempre fuma... - disse Jorge
- Sim, mas não fumo de qualquer maneira.
- De qualquer maneira? - surpreendeu-se.
- Quer dizer, não fumo em qualquer altura. Fumo só quando me apetece estar com o cigarro. - Manuela envergonhou-se da abstracção rebuscada e redundante que tinha sugerido. - Quer dizer...
- Eu percebi. Está a dizer que não fuma compulsivamente. Que fuma em ritual, fuma em consciência desse próprio momento.

- Sim. Mas se calhar todos fumam assim.
- Não, claro que não. Uns sim, outros não. Uns às vezes assim e outros quase nunca. Eu percebi-a. Parece que quem fuma poucos cigarros por dia tem uma relação diferente com o cigarro.
- Isso não sei -
respondeu Manuela sem perceber porquê aquele assunto trivial que parecia não querer ficar-se pela sua qualidade pouco meritória do vício que não se domina e até é contra-natura comparado a outros.
- O tabaco é também um verbo da civilização, sabia?
- (?) - Manuela estava á toa.
“O acto do fumador nem sempre é simplesmente ‘seu’ e egoísta para si“, pensou enquanto observava a facilidade com que Manuela se expressava sem deixar a serenidade do silêncio.
Manuela não estava à toa, mas desconfiada com aquelas reflexões.
- Por exemplo, a razão do lume para o cigarro foi explorada no cinema americano e consta das cenas históricas das suas divas, como a Marlene Dietricht. Às vezes chegam a ser só essas sequências que se concentram e reservam na nossa memória.
A Marlene Dietricht tem uma espectacular, acho que no Anjo Azul, em que o ecrã é engolido pelo movimento ascendente do seu rosto até se adivinharem os ténues músculos do pescoço. Entretanto surge uma mão fina e pálida que leva uma elegante boquilha à boca pequena, os olhos escuros focam o homem ao lado, o homem do lado perde-se na exuberância daquele gesto e a Marlene, agora dominante, sugere-lhe explicitamente o ‘seu’ lume que o homem enfeitiçado tem para ela. Ele dá-lho deliciado.

No cinema, os actores e as actrizes pedem pelo ‘seu’ lume como um direito inerente à sua condição tabagista ou então pelo lume do estranho, porque qualquer homem ou mulher parecem ter reservado e guardado ‘lumes’ para se perderem nesse gesto suave, incondicional e dedicado aos outros. Já reparou quão constrangedor é, de repente, um estranho fixar-nos e acender-nos o cigarro sem o pedirmos?
Manuela ouvira-o em silêncio e só voltou a falar para se despedir quando Jorge se levantou.
- Deixou-nos o currículo? Depois de todas as entrevistas a agência contacta-a.
A entrevista terminou e ela saiu com uma estranha sensação de conforto perante toda aquela exploração personalista. Adiou o regresso a casa e atravessou a rua para tomar café mais à frente, quando um andrajoso de meia-idade lhe pediu “por qualquer coisa“.
Não respondeu logo. O homem ainda era novo, só que coberto por uma camada de sebo tal, que a barba farta de ancião lhe velava a juventude e enrijecia a roupa até os seus movimentos serem quase estáticos como os dos velhos que não sabemos quando é que acabam o que começaram.
Os velhos quando se deslocam parecem executar passos que duram uma eternidade para nós. Parece que medem cada segundo espacial dos seus próprios movimentos, como se a sua vitalidade receasse ficar por ali, suspensa e final.
Quando perguntamos, por exemplo, se lhes dói alguma coisa, dizem espantados que não. E, a seguir, porque se movem então tão vagarosamente, eles reagem surpresos e afirmam que andam como sempre andaram e o seu corpo reage como sempre o fez, fiel à vontade.
- Então e um cigarrinho? - sugeriu o andrajoso.
Manuela tirou o maço de dentro da bolsa, escolheu o cigarro mais saliente, guardou o pacote e regressou com o isqueiro na mão.
- Obrigadinho. Eu tenho...
Antes de ouvi-lo dizer que tinha lume, iluminou num ápice o rosto do velho que não era velho, com a chama devolveu-lhe a juventude dos olhos claros e brilhantes e apontou-lhe o cigarro que aguardava paciente.
Ela sorriu para o andrajoso grato, ele riu mostrando uma coroa de dentes ainda apresentável e inspirou comovido uma grande porção de fumo enquanto a chama não se extinguiu.
- Muito obrigado minha senhora.

11.15.2005


2.
- O primeiro mês é sempre mais fácil: sistema informático, arquivo e atendimento ao público... - "É sempre fácil para todas", pensou Manuela - Hoje vais conhecer duas casas e reunir os dados do vendedor... mas antes de te dar a agenda vai falar com o Sr. Jorge.
Joana dirigiu-se ao gabinete no cimo das escadas, tão confiante quanto Manuela que a observava.
"Agora entras, ele diz para fechares a porta que está sempre aberta, vai levantar-se para desabotoar o casaco do fato e sentado oferece-te um sorriso dos mais bonitos que eu já vi. Vai dizer-te a seguir..."
- Sente-se. Esteja à vontade - disse Jorge enquanto libertava o tronco do casaco. Sentou-se, afastou os papéis do centro da mesa e lançou um sorriso carinhoso que deixou a estagiária mais à vontade - O primeiro mês é sempre mais fácil Joana.
- É? - "Tenho que responder com confiança mas sem parecer sabichona" pensou - Pareceu-me correr bem - "um frete administrativo" suspirou inaudível.
- A Manuela deu-lhe dois vendedores para conhecer. O que é que acha?
- Bem... - salvou-a o cigarro que Jorge não encontrava no casaco - Está ali... na mesa - sorriu e massajou o seu colo inquieto na procura do cruzamento certo das pernas.
- Hum, não se preocupe - o isqueiro falhou a chama à primeira vez - hum, hum, vamos os dois - e não falhou à segunda.
- Como é que vai ser? Quando é que vamos?
Era a primeira vez que falavam em trabalhar juntos.

11.14.2005


I.
- Manuela?
(...)
- Manuela?
Apareceu-lhe em passo rápido na sua direcção com uma pequena pilha de pastas vermelhas.
- Pediu-me mais alguma coisa?
Olhou para ela do cimo da gravata antracite bem acomodada pelo fato perfeito de 1,72m de altura e lembrou-se que a contratara fazia quase dois anos sem, na verdade, nunca lhe ter prestado muita atenção.
- Manuela?
Mediu-lhe a amplitude dos ombros e desceu para a cintura que desconfiava fina pelo andar e, porventura, então mais interessante. Só a conhecia daquele jeito, reservada e sob camisolas de corte clássico demasiado direito para um homem desejar perder tempo a contorná-las na esperança de alcançar a ilharga feminina.
- Sim?
- Manuela, é a Joana. Vai estagiar na agência três meses. Preciso que lhe mostre como funcionamos.

- Olá, eu sou a Manuela... a secretária do... a secretária da agência!
A grande montra rendilhada de acrílicos coloridos em forma de T oferecia casas para todos os gostos e feitios e a rua quase vazia permitia que a luz forte se abeirasse de todos e da sinalética vestida da jovem: "Mango tshirt? Mango Girl!"
- Olá, sou a Joana.
Do lado de fora da tômbola das ilusões, rostos insistiam na frustração do mercado inflacionista chegando a fazerem o que parecia contas à vida a mãos cheias. Os seus dedos mexiam sem parar, ora no sentido da CASA de papel que os seduzira, ora junto ao corpo, matraqueando para si uma soma habitada dos dedos respectivos ao seguro, à mensalidade, ao juro e à entrada.

11.10.2005

Acasos que se fazem casos e coisas de gente

Depois de várias "ameaças" à minha reclusão dialéctica, persistentes solicitações para continuar no firmamento da Blogosfera e ponderadas as causas reais que me levaram à cerca de 10 dias a por fim ao BocadosdeGente [um projecto deveras importante no dia a dia estéril da minha insignificância(*)], a questão primordial mantém-se inamovível e ditadora:
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A COMUNICAÇÃO ENQUANTO OBJECTO
DE EXPRESSÃO/CARACTERIZAÇÃO INDIVIDUAL E O CONSEQUENTE UNIVERSO UNO
E IRREPETÍVEL QUE SE NOS IMPÕE ESTABELECER E LEGITIMAR
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A LEITURA é indissociável da ESCRITA (pelo menos o prazer esporádico de testá-la), porém, não basta a caneta e o domínio do alfabeto para o exercício erudito das circunstâncias e relações humanas. A produção literária caberá sempre aos "génios", no entanto, a grande Exposição Humana está na diversidade de cada um de nós, concentrações do Homem histórico e transgeracional.
Para escrevedores como eu, a essência da ESCRITA é a acção pessoal dela e sobre si mesma. A convivência ou cumplicidade com as suas emoções.
A sua experimentação nunca é suscitada por abstracções mas, fundamentalmente, pelos acasos que se fazem casos e coisas de gente.
Quando o processo é profundo e interiorizado, a ESCRITA ganha no tempo a mesma importância que um amor e produz uma espécie de arquitectura pessoal que é amplamente desejada pela cidadania afectiva que constitui e imortaliza.
A ESCRITA, não importa que caia em revelações narcisistas, porque ainda assim consolida e desenvolve a plenitude e maturidade do seu autor enquanto espécie filosófica.
Assim, ainda me fico por cá mais um tempo. Indo e vindo por não sei onde...
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(*)Isto é para ler e esquecer!