12.27.2005


4.
No exíguo átrio um cliente em pé e outro sentado.
Manuela confirmava uma eficácia fora do comum para uma empresa de estrutura mais familiar que tecnológica.
O telefone ao ouvido com poucas palavras e menos ainda para o homem à mesa a quem ofereceu um formulário para preencher.
- Se me der o seu contacto telefono-lhe daqui a alguns minutos para lhe dar a bolsa imobiliária... Sim... Claro.. Obrigado, então até já.
Pousou o auscultador e ligou o gravador de chamadas de design obsoleto ao mesmo tempo que se levantava para atender o cliente em pé.
- Sente-se aqui por favor. Preencha estes impressos se não se importa.
Hesitou e pareceu aparentemente baralhada. Em pé, de papéis na mão, reparou que o profissionalismo lhe levantara a saia evasé e deixara a descoberto os joelhos de pele impecável.
Ciosa da sua frescura desfez o rodopio e sorriu muito profissional aos clientes que aguardavam o rubor da exposição.
- Sente-se. Um momento! - reparando que a única cadeira livre estava ocupada pelos pertences da estagiária.
Um segundo de hesitação nada mais e a ideia tão rápida quanto o desejo invejoso pela bolsa de Joana.
Voltou-se, pousou as folhas e desta vez muito lenta (sem que os clientes dessem por tal) procurou-a para si. Tomou-lhe o peso como só a sensibilidade feminina sabe fazer e no intervalo voador entre o apoio mais próximo e a cadeira liberta da matéria estagiante pôde observar em rigor o que ela continha: “carteira, baton, Tampax, agenda telefónica, perfume-oferta da Nívea e... um par de cuecas... UMAS CUECAS?!”.
“Inúteis”, pensou primeiro. “Familiares” concluiu depois. Sorriu delatora porque, assim de repente, não se lembrava exactamente quando negligenciara a sua própria bagagem, nem porquê.
“Carteira, Dom Quixote traduzido por Aquilino Ribeiro, um bloco de apontamentos de capa dura, uma lapiseira Rotring de carvão grosso e macio, pensos higiénicos. Sim, pensos higiénicos e cigarros”, recordou como seus haveres e penitenciou um aborrecimento doloroso.
O segundo homem sentado pediu uma caneta que já se encontrava a seu caminho e na única mão livre daquela dança toda.
Manuela não era velha. Também não era nova mas ainda estava longe de se considerar demasiado vivida nos 37 anos preservados do mundanismo erótico da roupa demasiado justa ou demasiado lassa que nem sempre poupa a firmeza ou o toque aveludado da pele. Tinha consciência disso e orgulhava-se.
“As mulheres não sabem explicar porque é que, um dia qualquer e perdido o brio e auto-estima, trocam de repente o tampão imperceptível à mão da exploração masculina pelo penso higiénico desagradável. Porque num dia toldado pela solidão ou abandono renegam uma agenda telefónica e a certeza dos laços estabelecidos em histórias que preferem passar a lembrar nos livros utópicos e traiçoeiros.
Ou porque é que desleixam o baton e o perfume que decoram e refrescam o seu anonimato. Ou que as fantasiam na sua justiça de se sentirem desejadas e desejarem enfeitiçar os homens“.
Enquanto melindrada, o cliente à sua beira levantou-se e o outro, ainda sentado, olhou-a.
- Obrigado, telefono-lhe depois para lhe dizer alguma coisa - Manuela olhou a seguir para o outro que se levantara em sequência - Obrigado... Um momento! A caneta? Obrigado, boa tarde!