12.30.2005


5.
A porta do n.º 117 da Rua do Terreirinho guardava um indivíduo à volta dos 50 anos, vestido informalmente e com uma de pasta Ice Tea esverdeada cujo fecho desdentado deixava espreitar folhas demasiado apertadas.
- Estou? João?... Espera... - acelerou o passo e esticou o pescoço - Sr. Jorge? - sorriu - Estamos ainda longe?
- Se é importante atenda. É já ali. Vê? - e apontou para uma porta verde-garrafa ao fundo da rua - Eu vou andando.
Joana parou e com os jeitos próprios das raparigas novas e vaidosas flectiu uma perna, dobrou ligeiramente a cintura e com a mão livre ergueu divertida e em pose o telemóvel.
Junto à entrada profusamente talhada e com aço a envolvê-la até ao cimo do seu pé demasiado alto para citadinos de estatura média, os negociantes cumprimentaram-se e viraram-se para o horizonte da jovem que vinha ao encontro de ambos.
- São estas as chaves? Muito bem... Os registos de propriedade, os... e..., parece-me que está tudo em ordem. A minha secretária vai, entretanto, telefonar-lhe para confirmar os valores da venda. Nós ficamos mais um pouco. Obrigado.
- Muito boa tarde então!
O homem despediu-se de Jorge com um aperto de mão protocolar e outro mais indiferente para com a jovem amigável e encostada ao silêncio desinteressado. Entraram e subiram a escadaria sofisticada.
- 50 Metros quadrados pós-pombalinos, 2 assoalhadas pequenas e uma mais digna para estar..., uma casa de banho renovada e... uma cozinha quase primitiva. O que é que acha?
- Acho? Quer dizer... -
“o que é que eu acho?” pensou - Acho velha e pequena. Simpática, mas velha e pequena - “o que é que há aqui?” perguntou-se Joana.
- É neste preciso momento que é importante memorizar o imóvel.
- Claro. O que é que o Sr. Jorge esperava que achasse?
O 3.º andar da rua estreita não deixava o sol farto entrar e simulava antes do tempo o crepúsculo do dia. De facto não parecia haver muito mais a dizer mas, entretanto, Jorge cirandava pelas tábuas do chão como se o esperasse alguma surpresa.
- Quando a Joana comprar a sua casa... Já tem casa?
- Não - “acabei a faculdade e já tenho casa?” atirou para si - Não, claro que não. Mas...
- Vender casas é um negócio especial. Repare, não nos limitamos a vender o produto - Jorge balançou corpo - vendemos acima de tudo uma ideia do que aqui se pode construir como lar e, amanhã, suscitar a vontade de crescer em família ou reservar individualista ao exterior.
Tudo parecia lógico só que Joana não entendia o que lhe faltava percepcionar naquele preciso momento e que respirava por entre as paredes mortiças e baças.
- Quando vai comprar roupa o que é a faz escolher entre esta ou aquela peça? E quando são as duas diferentes e sem comparação o que é faz? - parou e fixou-a até a assustar.
No caminho de volta à agência nenhum dos dois se encarava. Jorge conduzia zeloso e Joana ausentava-se do automóvel como que preocupada.
“O silêncio denuncia-me”, pensou aflita sem conseguir contrariar essa emoção. Recuou na memória, visualizou o espaço e ainda assim não era claro o que era suposto ter interpretado.
Não conseguia. “Chegámos, entrámos num espaço muito pequeno de estilo pobre e despojado dos décors da época que não oferecia nada do que a mim e a qualquer um interessa realmente. A casa de banho mal pode com os sanitários, a cozinha mete dó e o resto... O resto? O resto é madeira velha e cal rala a envergonhar os quartos onde não cabe um roupeiro. Talvez uma cómoda... nem isso! O que é que ele viu ali que eu não vi?”
Á medida que o rosto cismado da jovem parecia desejar saltar janela fora do automóvel, Jorge estudava sereno a frustração juvenil sem dar a entendê-lo. Sabia que a casa não tinha nada de particular e não havia qualquer magia para descobri-lo.
Havia, isso sim, um procedimento certo para o impacto da primeira visita ao imóvel. Se não, como vender dezenas por ano, todos diferentes e para clientes também diferentes entre si?
Ora, o segredo não estava de facto no espaço físico, mas na sua envolvência estimulada pelo vendedor aos compradores quando abrem as portas do que pode vir a ser a sua casa!
O procedimento não estava realmente à vista, mas recolhido na sensibilidade do angariador apto a tornar o imóvel desejado porque induziu ao cliente expectante a dimensão da intimidade e uma espécie de reconhecimento pessoal que sabemos perdoar e descurar a falta de segurança, a ausência de tecnologia ou, porque não, a evidente inadaptabilidade do imóvel!
Jorge divertia-se e a estagiária sentia-se ameaçada por qualquer coisa indefinida mas que sabia concreta porque perturbava-a e não tinha domínio sobre a sua própria reacção a ela.