11.17.2005


3.
Um empresário tem duas prerrogativas fundamentais para sobreviver no mercado competitivo do consumidor caprichoso e da economia global que não dá almoços grátis nem aos próprios patronos da sua capacidade geradora.
Consta que o segredo do bom negócio está entre a necessidade constante do produto e a apetência do negociante para a engenharia financeira que possibilita a médio prazo consolidar sempre uma diferença majoritária de capital liquidado em relação ao investimento feito.
Para Jorge, este equilíbrio frágil entre as receitas e as despesas, entre a qualidade e a expansão da máquina produtiva e entre as mais-valias que fazem os homens ricos e o serviço à comunidade ansiosa por gastar, “era como gerir o vício tabagista”.
Ninguém dava por este exercício quase freudiano com os cigarros, nem mesmo Manuela. Só muito mais tarde, aquando lhe parecia partilhar da sua intimidade, notara que era real e racionalizado e não um recurso hedonista de sedução.
De facto, da imagem pública do pequeno empresário não consta o gesto fumador que interrompe constante e viciosamente o diálogo ou a atenção mais descomprometida.
“Antes mesmo de se fumar, primeiro o cigarro como que nos fuma parte da essência do próximo gesto ou a possibilidade de percepcioná-lo nos outros. Uma acção aglutinadora. Do ponto de vista histórico, o cigarro ou a coisa que se fuma está presente em vários momentos e personalidades históricas, como Sir Winston Churchill, os grandes chefes índios em reunião com os colonos americanos ou o ópio sublimador da alma asiática”, dizia Jorge.
- É por isso que costuma andar com um cigarro? Um único?
- Bem... Um, dois. Mas nunca mais que três! É como que um teste de disciplina Manuela. Enquanto eu tiver ciente da fatalidade a que o meu prazer se sujeita se fumar levianamente os únicos cigarros que possuo, esta empresa crescerá com saúde.
Alguns empresários não têm como necessário, mas deviam. Para gerir o equipamento humano é preciso acima de tudo que nunca se menosprezem as hierarquias inteligentes e não deixar a suspeita aos subordinados de que são apenas um operariado sem rosto e desvinculado emocionalmente das suas tarefas.
Jorge, sem qualquer formação específica microeconómica ou empresarial, estava consciente disso e quando decidiu contratar uma secretária assegurou que, fosse qual fosse o seu perfil particular, ele devia ser permeável para a empresa poder absorvê-lo proficuamente, ao invés de ‘apagá-lo‘ até a frustração tomar conta da competência do próprio e, a seguir, da eficácia do serviço.
Antes da agência, Manuela trabalhava num centro de documentação de uma grande empresa estatal, a REFER. Depois de 6 anos a sentir-se ‘rato de biblioteca’, entendera que se o seu trabalho era tão triste e solitário numa verdadeira biblioteca onde livros e gente eram o cerne das suas tarefas, então desejava fazer outra coisa qualquer e, sem medo algum da precipitação, cega decidira responder ao anúncio da imobiliária.
Quando na entrevista lhe perguntaram porquê aquele ramo de negócio ela, naïfe do discurso adequado, só soube dizer:
- Bem, excluindo a minha área académica, só posso ser também competente no que participe dos meus valores. E em relação às casas, um espaço humano e uma referência de cultura social, acredito que possa aprender e...
Nesse preciso momento Jorge levantou-se, deu indicações para continuarem as entrevistas e convidou Manuela para passar ao seu escritório.
Puxou-lhe a cadeira para trás como um empregado de restaurante, sentou-se e ofereceu-lhe um cigarro ao que ela recusou.
- Obrigada. Agora não.
Ele também não fumou e olhou para ela disfarçando essa análise com fingidos arrumos no que estava sobre a secretária.
- Então sempre fuma... - disse Jorge
- Sim, mas não fumo de qualquer maneira.
- De qualquer maneira? - surpreendeu-se.
- Quer dizer, não fumo em qualquer altura. Fumo só quando me apetece estar com o cigarro. - Manuela envergonhou-se da abstracção rebuscada e redundante que tinha sugerido. - Quer dizer...
- Eu percebi. Está a dizer que não fuma compulsivamente. Que fuma em ritual, fuma em consciência desse próprio momento.

- Sim. Mas se calhar todos fumam assim.
- Não, claro que não. Uns sim, outros não. Uns às vezes assim e outros quase nunca. Eu percebi-a. Parece que quem fuma poucos cigarros por dia tem uma relação diferente com o cigarro.
- Isso não sei -
respondeu Manuela sem perceber porquê aquele assunto trivial que parecia não querer ficar-se pela sua qualidade pouco meritória do vício que não se domina e até é contra-natura comparado a outros.
- O tabaco é também um verbo da civilização, sabia?
- (?) - Manuela estava á toa.
“O acto do fumador nem sempre é simplesmente ‘seu’ e egoísta para si“, pensou enquanto observava a facilidade com que Manuela se expressava sem deixar a serenidade do silêncio.
Manuela não estava à toa, mas desconfiada com aquelas reflexões.
- Por exemplo, a razão do lume para o cigarro foi explorada no cinema americano e consta das cenas históricas das suas divas, como a Marlene Dietricht. Às vezes chegam a ser só essas sequências que se concentram e reservam na nossa memória.
A Marlene Dietricht tem uma espectacular, acho que no Anjo Azul, em que o ecrã é engolido pelo movimento ascendente do seu rosto até se adivinharem os ténues músculos do pescoço. Entretanto surge uma mão fina e pálida que leva uma elegante boquilha à boca pequena, os olhos escuros focam o homem ao lado, o homem do lado perde-se na exuberância daquele gesto e a Marlene, agora dominante, sugere-lhe explicitamente o ‘seu’ lume que o homem enfeitiçado tem para ela. Ele dá-lho deliciado.

No cinema, os actores e as actrizes pedem pelo ‘seu’ lume como um direito inerente à sua condição tabagista ou então pelo lume do estranho, porque qualquer homem ou mulher parecem ter reservado e guardado ‘lumes’ para se perderem nesse gesto suave, incondicional e dedicado aos outros. Já reparou quão constrangedor é, de repente, um estranho fixar-nos e acender-nos o cigarro sem o pedirmos?
Manuela ouvira-o em silêncio e só voltou a falar para se despedir quando Jorge se levantou.
- Deixou-nos o currículo? Depois de todas as entrevistas a agência contacta-a.
A entrevista terminou e ela saiu com uma estranha sensação de conforto perante toda aquela exploração personalista. Adiou o regresso a casa e atravessou a rua para tomar café mais à frente, quando um andrajoso de meia-idade lhe pediu “por qualquer coisa“.
Não respondeu logo. O homem ainda era novo, só que coberto por uma camada de sebo tal, que a barba farta de ancião lhe velava a juventude e enrijecia a roupa até os seus movimentos serem quase estáticos como os dos velhos que não sabemos quando é que acabam o que começaram.
Os velhos quando se deslocam parecem executar passos que duram uma eternidade para nós. Parece que medem cada segundo espacial dos seus próprios movimentos, como se a sua vitalidade receasse ficar por ali, suspensa e final.
Quando perguntamos, por exemplo, se lhes dói alguma coisa, dizem espantados que não. E, a seguir, porque se movem então tão vagarosamente, eles reagem surpresos e afirmam que andam como sempre andaram e o seu corpo reage como sempre o fez, fiel à vontade.
- Então e um cigarrinho? - sugeriu o andrajoso.
Manuela tirou o maço de dentro da bolsa, escolheu o cigarro mais saliente, guardou o pacote e regressou com o isqueiro na mão.
- Obrigadinho. Eu tenho...
Antes de ouvi-lo dizer que tinha lume, iluminou num ápice o rosto do velho que não era velho, com a chama devolveu-lhe a juventude dos olhos claros e brilhantes e apontou-lhe o cigarro que aguardava paciente.
Ela sorriu para o andrajoso grato, ele riu mostrando uma coroa de dentes ainda apresentável e inspirou comovido uma grande porção de fumo enquanto a chama não se extinguiu.
- Muito obrigado minha senhora.